A batalha pela preservação de tombados do Centro de
São Paulo

Desde agosto desse ano, estima-se que cerca de metade das edificações tombadas da cidade de São Paulo encontra-se em um impasse. A transferência de potencial construtivo (TPC), um dos instrumentos mais promissores de incentivo financeiro à preservação do patrimônio cultural edificado, está proibida para tombados da região central. O impedimento ocorre por conta de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade que já dura vinte anos. 

Não tombar para não cair. É muito comum ouvirmos essa associação entre o tombamento de uma edificação e sua degradação material. Em parte, isso se deve à quase inexistente articulação entre o tombamento e políticas que promovam o uso e a conservação da edificação e sua relação com a cidade. 

O tombamento deveria ser apenas um dos ativos de uma complexa teia de políticas voltadas à preservação e ao desenvolvimento urbano. Não é isso, no entanto, o que acontece, e muitos desses ativos ainda são apenas idealizações distantes – como a sempre prometida isenção de IPTU. O diálogo com os órgãos de preservação também é bastante difícil, porque muitas vezes eles estão submersos em debates autocentrados e distantes dos usos e necessidades cotidianas das pessoas que se relacionam com o bem tombado.

Nesse cenário não muito animador, a TPC surge como uma possível resposta a uma demanda histórica por apoio à preservação de algo que, apesar de estar nas mãos de particulares, é reconhecido como bem cultural por apresentar um interesse que é público. 

Mas, afinal, o que é esse instrumento?

Em resumo, a transferência é a possibilidade de que um tombado transfira a um terceiro um potencial construtivo que ele teria direito de usufruir no seu lote, mas que não pôde fazê-lo em função das limitações associadas ao tombamento da edificação. 

O comprador interessado na TPC normalmente é aquele que está construindo uma quantidade de m² superior àquela que ele tem direito de construir gratuitamente no lote. Para construir acima disso, até um limite estabelecido em lei, ele deve pagar para a Prefeitura a Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC). 

Com a TPC abre-se um novo caminho para aquisição de potencial adicional de construção para além da OODC, e o dinheiro dela originado tem “uso carimbado”, isto é, destina-se obrigatoriamente à preservação do imóvel tombado que o originou. 

No decorrer dos anos, a TPC foi se aperfeiçoando e o cálculo do m² passível de transferência se alterou, em atenção às demandas das edificações por investimentos para seu restauro. Hoje em dia, São Paulo tem duas fórmulas que calculam o potencial construtivo passível de transferência. A regra geral de cálculo está prevista no Plano Diretor de 2014. A região central tem regra específica, definida pela Operação Urbana Centro, de 1997 (Lei municipal 12.349), como política de incentivo aos bens tombados ali localizados.

Cruzada contra as operações urbanas

A Operação Urbana Centro foi desenhada como um programa de melhorias para a região e via o expressivo número de edificações tombadas do perímetro como um ativo desse projeto. A Operação foi pioneira e previu a TPC como instrumento de incentivo à preservação antes mesmo do Estatuto da Cidade, de 2001.

Em 1999, com apenas dois anos de vigência, artigos da Lei da Operação Urbana Centro tiveram sua constitucionalidade questionada pelo Ministério Público Estadual. O problema estaria no modo como se dava a transferência para compradores situados fora do perímetro da Operação. Para o MP, a Lei permitia que o Executivo flexibilizasse o zoneamento em favor dos empreendimentos imobiliários compradores do potencial. E isso seria inconstitucional, porque estaria invadindo matéria de regulação típica do Poder Legislativo. 

Esse debate estava inserido numa ação mais ampla do MP de fiscalizar diversas operações da cidade. O caso mais emblemático foi o das Operações Interligadas (Lei municipal 11.773/95). Julgadas inconstitucionais em 2001 pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, elas de fato abriam um canal permanente de exceção ao zoneamento então vigente. Por meio do pagamento de uma contrapartida financeira, a então Comissão Normativa de Legislação Urbanística (CNLU) poderia autorizar empreendimentos imobiliários de toda a cidade a construírem com parâmetros urbanísticos distintos daqueles estabelecidos pela legislação.

A Operação Urbana Centro foi tratada como se fosse similar às Operações Interligadas, apesar da enorme distinção entre seus instrumentos. A imprecisão da medida judicial proposta pelo Ministério Público não conseguiu sequer indicar qual seria, afinal, o órgão do Executivo que estaria exercendo a competência delegada. A inconstitucionalidade da Operação Urbana Centro foi tratada em abstrato e os artigos atacados eram aqueles que apenas previam a possibilidade de transferência do potencial construtivo para fora do perímetro da região central. 

Essa fragilidade argumentativa não impediu que os artigos da Lei 12.349/97 fossem declarados inconstitucionais pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em 2002. As transferências para fora do perímetro da Operação ficaram proibidas e só voltaram a viger em 2004, quando o Supremo Tribunal Federal concedeu efeito suspensivo a um recurso extraordinário interposto pela Prefeitura e pela Câmara Municipal de São Paulo. Mesmo assim, poucos se aventuraram a utilizar o instrumento pela insegurança jurídica que se apresentava.

Veja mais em: http://www.justificando.com/2019/12/02/a-batalha-pela-preservacao-de-tombados-do-centro-de-sp/

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