Maria Lucilha de Faria estava apreensiva quando chegou ao aeroporto de Campinas, no interior de São Paulo. Afinal, levava nas malas algo que não poderia estar ali – e, logo, seu receio se concretizaria.
No check-in para ir à França, a mineira de 34 anos foi abordada por um policial federal. Provavelmente, ela e seus companheiros de viagem haviam chamado atenção no saguão do aeroporto quando terminavam de acomodar seu “contrabando”, embalado com várias camadas de plástico filme para tentar ocultar seu forte odor, em meio às roupas.
O policial perguntou o que havia dentro das malas. Era queijo, disse o grupo.
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Maria Lucilha e outros produtores da região da Serra da Canastra, no sul de Minas Gerais, participariam com outros brasileiros do Mundial de Queijo de Tours, competição realizada a cada dois anos que reúne produtores de vários países.
“Fiquei desesperada, com medo de ter os queijos apreendidos, jogados fora. Poderíamos perder todo nosso trabalho”, diz Maria Lucilha.
O agente pediu para que ela abrisse a mala e inspecionou um dos 15 queijos que havia ali. Depois das devidas explicações, o policial autorizou que ela colocasse o produto de volta na bagagem e prosseguisse com o check-in. “Foi constrangedor”, conta Maria Lucilha.
‘Vamos ser discretos, por favor?’
Ainda faltava outra etapa crucial para participar da competição: conseguir entrar com os queijos, feitos de forma artesanal e a partir de leite cru, em território francês.
Os produtores não tinham autorização de autoridades brasileiras para levá-los para o exterior, e a União Europeia proíbe que os passageiros carreguem derivados de leite na mala.
Os brasileiros levavam por precaução uma carta-convite da organização do concurso, para mostrar que não iriam vender os queijos na França, e atualizavam uns aos outros pelo WhatsApp sobre seu progresso.
“Pessoal, um concurso internacional está gentilmente recebendo queijos que não têm documentos sanitários para entrar no país. Tenho visto pessoas falando sobre isso abertamente antes de conseguirem entrar na França. Vamos ser mais discretos, por favor?”, dizia uma das mensagens.
“Isso é importantíssimo! Vamos deixar para chamar atenção depois de vencer os percalços para chegar lá”, reforçava outra.
A viagem acabou bem – todos os 143 queijos levados por produtores brasileiros nas bagagens conseguiram desembarcar são e salvos – e a tensão deu lugar ao bom humor.
“Chegamos, graças a Deus! Uma das malas foi pega por uma brasileira por engano. Desconfio que ela sabia que era queijo kkkk”, disse um produtor.
“Eu também pegaria, uai…”, brincou outro.
Brasileiros ganharam 59 medalhas
Todo o esforço compensou. Os brasileiros conquistaram 59 medalhas na competição, entre elas 4 superouros – a premiação máxima -, além de 8 ouros, 19 pratas e 28 bronzes.
Foi um desempenho bem superior à participação do Brasil na edição de 2017 do concurso, quando foram conquistadas 12 medalhas por produtores de Minas Gerais – e, desta vez, foram premiados queijos também de São Paulo, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pará e Goiás.
O resultado superou qualquer expectativa, diz a mestre queijeira Débora Pereira, diretora da SerTãoBras, organização sem fins lucrativos dedicada a apoiar produtores de queijo de leite cru e que ajudou a promover a participação dos brasileiros na competição francesa.
“Fizemos um bolão, e quem chegou mais perto apostou que ganharíamos 25 medalhas. A gente queria mostrar que o nosso queijo é bom. Isso vai ajudar a melhorar ainda mais nossa produção”, diz Débora.
Produtores enfrentam barreiras legais
Queijos de leite cru são fabricados de forma artesanal e em pequena escala, de acordo com métodos tradicionais. Sua principal matéria-prima é o leite recém-ordenhado e não pasteurizado.
O queijo industrializado é feito em grande escala, com leite de diversos produtores submetido à pasteurização, ou seja, é aquecido e depois resfriado para eliminar bactérias.
Os produtores artesanais não realizam este processo, mas dizem que outros métodos, como a maturação dos queijos, o controle de qualidade da água e do leite usados na fabricação e exames periódicos de seus rebanhos garantem a segurança sanitária da produção.
Ainda assim, eles enfrentam restrições para comercializar seu produto fora de suas regiões e não conseguem exportá-lo.
O mesmo não ocorre com queijos feitos da mesma forma em outros países, como na França, que podem ser importados e chegam às prateleiras dos supermercados e empórios brasileiros.
Hoje, os franceses são os terceiros maiores exportadores de queijo do mundo, de acordo com a Organização das Nações Unidas. Respondem por 12% de um mercado que movimenta US$ 29,6 bilhões (R$ 114,3 bilhões) por ano. A Alemanha (15%) e a Holanda (13%) lideram, enquanto o Brasil ocupa apenas o 50º lugar, com 0,06%.
“A produção francesa tem mais de mil anos. Eles já resolveram a questão da comercialização de queijo de leite cru há muito tempo, enquanto, no Brasil, é uma batalha que dura desde os anos 1990”, diz o advogado Marco Aurélio Braga, que representa a Associação de Produtores de Queijo Canastra (Aprocan).
Nova lei ainda não foi regulamentada
Braga explica que vigorava até o ano passado uma lei de 1950 que estabelecia que produtos de origem animal deveriam ter um selo de inspeção federal para serem comercializados fora dos Estados onde foram produzidos. Mas, na prática, essa legislação impedia a circulação nacional dos queijos de leite cru, porque, para ter o certificado nacional, era preciso usar leite pasteurizado.
Isso mudou em 2018, com a lei 13.680, que permitiu que produtos artesanais fossem vendidos no país desde que contassem com uma certificação estadual ou, futuramente, obtivessem o chamado “selo arte”, que seria conferido por órgãos de saúde pública estaduais para atestar que o produto artesanal segue características e métodos tradicionais e boas práticas de fabricação e de segurança sanitária.
Mas a nova legislação ainda não foi regulamentada. Sem isso, o sistema que regula o queijo de leite cru e o pasteurizado industrialmente ainda são muito parecidos, diz Braga.
O advogado da Aprocan afirma que os produtores compartilham das preocupações com as condições sanitárias e a qualidade dos produtos, mas consideram injusto que sejam aplicadas as regras de produtos industrializados para os artesanais.
“A briga não é para liberar geral, mas não se pode usar a mesma régua para dois sistemas diferentes, que geram o mesmo resultado: um produto de qualidade para o consumidor.”
Hoje, isso dificulta a legalização dos queijos artesanais, diz Braga. Dos 830 produtores cadastrados na Aprocan, por exemplo, apenas seis têm a certificação estadual atualmente.
A BBC News Brasil questionou o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento sobre a queixas dos produtores artesanais e para entender se seria possível transportar este tipo de queijo para participar de competições no exterior, mas não recebeu uma resposta até a publicação desta reportagem.
‘O risco é seu’
Um dos reflexos desta situação é a dificuldade de levar o queijo de leite cru brasileiro para fora do país, seja comercialmente ou para participar de competições, como o Mundial de Queijo de Tours.
“Muita gente na França demonstrou interesse em importar nossos queijos, mas a gente tinha que explicar que eles estavam lá apenas para o concurso, porque as nossas leis não permitem que a gente os exporte”, afirma Braga.
Débora Freitas diz ter buscado a embaixada da França para obter a autorização para que os queijos de leite cru brasileiros entrassem no país.
“Recebi uma lista de documentos enorme, exigindo uma série de certificações. Um produtor caipira nunca ia conseguir cumprir aquilo. Além disso, diziam que o queijo deveria ser feito com leite UHT ou pasteurizado”, afirma ela.
A alternativa foi levar os queijos brasileiros para a França clandestinamente. “Falei para cada produtor: ‘O risco é seu, não posso assumir esse risco por ninguém’. E todo mundo aceitou.”
Trabalho duro e dedicação
Maria Lucilha é a quinta geração de sua família a se dedicar à produção de queijos da Serra da Canastra, que é considerado um patrimônio cultural e imaterial brasileiro, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Ela volta da França com três medalhas de prata, em sua primeira participação em uma competição internacional.
“Estamos buscando reconhecimento não só para a Serra da Canastra, mas para o Brasil todo. É um absurdo a gente ter que sair com isso do país escondido na mala”, diz ela.
“A gente trabalha duro para que nosso produto tenha uma qualidade impecável, porque leva o nosso nome e de uma região inteira. Não colocaríamos em risco nossa própria família, que consome o queijo diariamente, e o nosso ganha pão.”
O casal Maria Lúcia e Ivair José de Oliveira, de 48 e 49 anos, conquistou uma das medalhas superouro, além de um bronze, em sua segunda participação no mundial.
Eles não puderam ir à França, mas, de seu sítio no interior de Minas, onde produzem queijos há 19 anos, acompanharam pela internet o resultado. Maria Lúcia diz que a expectativa era ganhar no máximo uma prata.
“Quando vimos o superouro, foi um susto. Choramos de alegria, porque envolve muita, muita dedicação. Brinco que cuidamos dos queijos até melhor do que cuidamos de nossas filhas”, diz ela.
Mas, ainda assim, ela não esquece os problemas enfrentados para participar do concurso.
“Temos queijos de qualidade, que passam por processos rigorosos de produção, e a legislação não permite que a gente mande eles para fora. Isso é uma parte triste de toda essa história.”
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