Um novo projeto de lei para regulamentar fabricação e produção de queijo artesanal está correndo em regime de urgência no Senado
Uma reviravolta legislativa vem alvoroçando os produtores de queijo artesanal do Brasil nesta última semana. A Lei do Selo Arte (13.680/2018), aprovada em 2018 e nunca regulamentada, corre o risco de ser revogada pela aprovação de outro projeto de Lei, o PL 122/2018. Ele está disponível para consulta pública no Senado e todo cidadão pode acessar e opinar sobre a matéria, votando “sim” ou “não” pelo apoio.
Com medo de perderem todas as promessas que vieram com o Selo Arte, os produtores estão se mobilizando e o voto pelo “não” está ganhando.
Hoje, um queijo de leite cru na Serra da Canastra, sem registro, é vendido R$ 8 a peça. Não remunera de forma justa os 10 litros de leite que gastou pra ser fabricado. Essa falta de valor é a consequência econômica e social de não haver ainda uma lei para legalizar esses produtores.
O novo projeto de lei corre em regime de urgência. Igual também aconteceu com a Lei do Selo Arte. Isso significa nenhuma participação popular. Ou seja, burocratas decidindo como o produtor artesanal deve fazer queijo. Podemos dizer o mesmo da Lei do Selo Arte: ninguém foi convidado para redação da lei e pouquíssimos foram convidados para saber da sua regulamentação, que ainda não foi assinada.
Entrevistamos o advogado Marco Aurélio Braga, autor da tese de doutorado Produção artesanal do queijo de leite cru: dilemas do desenvolvimento agrícola brasileiro, defendida na USP em 2018, para esclarecer os riscos dessa nova lei ser aprovada.
O que é essa nova lei para o queijo artesanal que tramita no Senado? Em que ela ameaça o Selo Arte?
Marco Aurélio Braga: O Projeto de Lei dos deputados Zé Silva (Solidariedade-MG) e Alceu Moreira (MDB-RS) tramitou rapidamente em 2019. Foi aprovado na Câmara e ganhou regime de urgência no Senado, podendo ser votado esta semana.
O PL 122/2018 busca regulamentar a produção e comercialização de queijos artesanais. Ele pode ser votado e ir para sanção da presidência, virando lei. Se isso ocorrer, todo o trabalho para a regulamentação do Selo Arte que foi feito no último ano será perdido. Esse PL trata apenas de queijos artesanais e dá critérios mais rígidos para a produção. A chance de aumentarmos a insegurança jurídica é grande: não sabemos qual órgão vai regular qual atividade; não sabemos se as regras do Selo Arte estarão em harmonia com a nova lei, nem se queijo artesanal será só aquele com leite da própria fazenda. Até regulamentar essa nova lei, o que será feito com as 175 mil famílias (segundo o IBGE) que produzem derivados de leite no Brasil? Enfim, são questões que com certeza irão surgir.
Qual a confusão imposta por esse novo projeto de lei?
Opinando um pouco sobre o PL, entendo que se cria mais confusão do que solução. Precisamos entender que estamos dentro de uma federação e que isso tem consequências quando vamos fazer nossas leis. O Projeto sequer faz menção à Lei 1.283/1950, que trata do tema até hoje. Temos que discutir isso. Haverá revogação tácita dos itens que tratam da produção artesanal de leite? É mais incerteza para o produtor rural lidar.
Além disso, esse projeto de lei traz uma série de considerações e especificações que padronizam o queijo artesanal no País, o que me parece um contrassenso. Como estamos lidando com um produto que é vivo e como a forma “artesanal” no País se difere muito, criaremos uma lei federal para regrar procedimentos que deveriam ser decididos por Estados produtores, ou até mesmo regiões ou municípios. O grande mérito da Lei 13.680/18 é justamente esse: reconhecer o papel da federação em discutir a questão, algo que já havíamos conquistado de maneira tímida com o Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (SISBI-POA/SUASA).
Qual a definição de queijo artesanal no novo projeto de Lei?
O artigo primeiro define como queijo artesanal aquele elaborado a partir de métodos tradicionais com vinculação e valorização territorial, regional ou cultural, conforme protocolo de regulamentação específico para cada tipo e variedade, com emprego de boas práticas agropecuárias e de fabricação. A pergunta é, quem vai elaborar um protocolo específico para cada tipo e variedade? Como não há definição, ficaremos anos discutindo para saber. É a União, por meio do Mapa? Haverá transferência aos Estados? Sob quais termos? Há espaço para associações produtoras se auto-regularem, como acontece em outros lugares do mundo? Nada disso está claro.
Há outros pontos polêmicos?
Sim, muitos. Do meu ponto de vista, jogar a produção artesanal para protocolos definidos por um órgão federal vai na contramão do que tem sido feito no mundo. Temos que olhar para a base da produção para organizarmos esse sistema do local para o nacional, de forma a integrar sua pluralidade cultural. Não me parece fazer sentido falar de “protocolos de elaboração” de queijo artesanal em lei federal. A partir do momento que for estabelecido um regramento em lei federal para se dizer como cada tipo de queijo deve ser feito, iremos engessar quem hoje produz e colocar mais dúvida num mercado que, apesar da regulação irracional que temos atualmente, está em plena expansão.
Então, se formos criar uma regulamentação interessada no desenvolvimento dessas famílias que geralmente estão em pequenas propriedades, teremos de olhar pra especificidade de cada região, de cada cultura queijeira do País. E esse não é o caminho do PL.
Quais os riscos para a produção de queijos tradicionais inovadores, como os queijos paulistas?
O PL não considera os queijos inovadores como artesanais. Deixar essa matéria muito pormenorizada em Lei Federal é um grandissísimo tiro no pé: temos um país de dimensões continentais. Será impossível fazer uma lei de cima pra baixo, como quer o PL 122/2018, delimitando o que é o artesanal, e imaginar que isso se aplique ao país inteiro.
Essas limitações que estão no projeto são totalmente anacrônicas com a situação nacional: leite da própria fazenda, quantidade diária… não faz sentido para uma produção agroartesanal em visível expansão e experimentação de novos modelos. Temos também o risco de uma surpresa com novas barreiras que podem vir na regulamentação do Selo Arte.
O que é importante saber sobre a Lei 13.680/2018, conhecida como a Lei do Selo Arte?
Ela altera especificamente um artigo da Lei 1.283/1950 (que dá as bases para a instituição do Riispoa – Regulamento de Inspeção Industrial e Sanitária de Produto de Origem Animal) e permite a circulação dos produtos nacionalmente, desde que inspecionados nos seus Estados de origem, até termos uma regulamentação do Selo Arte. O Riispoa, desde sua edição até hoje, não alterou a “ilegalidade” da produção artesanal, e por um motivo simples: ele serve para tratar da produção industrial brasileira, uma das maiores cadeias produtivas de alimentos do mundo. Ora, não faz sentido uma lei que regula a indústria falar do artesanal. São mundos que não se conversam.
Qual a nova realidade criada pela Lei do Selo Arte?
Ela cria um outro regime jurídico, o regime do produto artesanal, a ser instituído pelo Selo Arte (aprovada por proposição do deputado Evair de Melo). O artigo 10-A permite que comecemos finalmente a debater uma regulamentação de produtos agroartesanais a partir da dimensão de uma nova cadeia produtos – com insumos, produtores, produtos e consumidores distintos da cadeia industrial. Lógico, isso muda o mercado, a bacia leiteira, e mexe com interesses, então há resistência. Essa lei tem alguns méritos, dos quais destaco dois: até ser regulamentada, está autorizado que produtos com selo de inspeção estadual sejam comercializados em todo país; além disso, permite que a regulamentação por decreto seja mais amplamente discutida com os setores envolvidos, desde que o governo faça uso das boas práticas regulatórias para tratar a matéria, convocando produtores, consumidores, associações, enfim, aqueles e aquelas que sofrerão o impacto dessa regulação. Permite também transferir essa competência aos Estados, o que é importantíssimo.
Na sua opinião, o que é importante considerar ao criar uma legislação para o queijo artesanal brasileiro?
Nós precisamos olhar para a localidade, para as características culturais, naturais e históricas de cada região. É assim no mundo todo. E temos um sistema federativo: a União cria orientações e princípios sobre o tema, amparada na Constituição Federal, tanto em sua divisão de competências quanto nas orientações da política agrícola. A partir daí, os Estados e posteriormente os municípios podem complementar o ordenamento jurídico, indicando as especificidades que devem ser respeitadas de acordo com características próprias. É fundamental essa compreensão para podermos pensar em como iremos estruturar um sistema nacional de produção agroartesanal – da mesma forma que temos hoje com a produção de alimentos industriais.
O que está valendo hoje em dia para quem produz queijo artesanal?
Hoje, no meu entendimento, está permitida a livre circulação de produtos de origem animal com selo de inspeção estadual. Para quem tem inspeção municipal, permite-se a circulação somente dentro do Estado.
A produção industrial já tem uma regulamentação própria estabelecida no Riispoa e que é referência mundial. Óbvio, sempre tem o que melhorar, mas o País conseguiu em 50 anos tornar-se urbano e industrial também em razão das políticas sanitárias e industriais para produção de alimentos para as zonas urbanas.
O que foi feito no último ano, desde que a Lei do Selo Arte foi aprovada, em junho de 2018?
Foram discutidas formas de estabelecer processos de classificação, controle, inspeção e fiscalização de produtos obtidos de forma artesanal. Há críticas contra a timidez da participação social nesse processo e a falta de amparo técnico, de estudos comparados que são necessários para fazer uma boa regulação, críticas com as quais eu concordo. Mas houve avanços e já temos por onde começar nessa longa caminhada de criação de uma legislação robusta que dê suporte ao produtor agroartesanal.
Atualmente, essa discussão chegou numa minuta final de decreto que circulou em uma série de grupos que lidam com a questão artesanal. Parece que está na Casa Civil para ser assinado pela Presidência da República, desde março ou abril.
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